Berserk e a obediência

Berserk e a obediência

Berserk, a obra máxima de Kentaro Miura tem dois polos indutores de sua narrativa. O primeiro polo está em Guts, o guerreiro que sobreviveu a um passado de abusos e traumas, concentrado somente na missão de sobreviver. O segundo é Griffith, o plebeu ambicioso para quem apenas sobreviver não basta. Da interação entre os dois nascem os atritos que movem a história. Guts, tendo vivido a vida de um soldado, só estará livre para encontrar uma razão para sua existência quando lidar diretamente com o tema da obediência, muito presente na cultura de um guerreiro como ele. O chamado arco da “era de ouro” de Berserk coincide com o período do Guts obediente. O rompimento dessa relação de subserviência só é atingido depois de levar Guts ao extremo de matar uma criança em nome dos interesses de seu superior. O caráter trágico da narrativa e a representação visual explícita do acontecimento fazem da cena um momento especialmente visceral da história dos animes.

METEORO RECOMENDA

Ima, Soko ni Iru Boku (Now and Then, Here and There)

Esse anime, com 13 episódios, tem momentos tão fortes e pesados quanto o arco de Berserk mencionado acima, embora ninguém jamais fosse desconfiar disso se observasse apenas a sinopse. Ima, Soko ni Iru Boku conta a história de Shu, um menino que pratica kendo e é transportado para um mundo paralelo que precisa ser salvo de uma ameça perigosa. Pode parecer uma história de aventura alegre para toda a família, mas não se engane: até os mais veteranos fãs de Berserk poderiam ficar chocados e desconcertados com os aspectos mais dolorosos da jornada de Shu.

Irmão do Jorel e o jornalismo brasileiro

Irmão do Jorel e o jornalismo brasileiro

A relação entre polícia e imprensa é abordada de maneira direta no episódio Jornal do Quintal. Aqui, está demonstrado o ímpeto de transformar tragédia em espetáculo trazido pelo encontro das autoridades da segurança pública e das autoridades do controle da informação. Muito do que acontece no episódio pode ser interpretado como metáfora de acontecimentos da história recente da atividade jornalística brasileira. O palhaço militar, nesse episódio, representa a autoridade policial e busca qualquer desculpa para empreender o uso da violência. Ao lado dele está o jornalista, que se esforça para fazer essas desculpas esfarrapadas parecerem razoáveis. Durante o episódio, o responsável pela segurança da sociedade diz que “o homem macaco já derrubou três pipas” e que “o jeito é bombardear a casa” em que ele está. O absurdo da constatação é incentivado pelo jornalista ao seu lado, que imediatamente declara que o homem macaco “não pensa nas crianças”. A crítica é sutil, mas faz uma declaração pesada sobre os erros tradicionalmente cometidos tanto pela polícia quanto pela imprensa. Esse episódio foi escrito por…

METEORO RECOMENDA

Arnaldo Branco

O roteiro por trás de Jornal do Quintal é obra dele. Há dois livros de Arnaldo Branco disponíveis por aí: Mau Humor e Mundinho Animal. Em ambos, o leitor vai encontrar críticas sociais do mesmo teor das inseridas no episódio de Irmão do Jorel. Mau Humor e Mundinho Animal priorizam narrativas curtas e conclusões rápidas, em quadrinhos de visual simples, econômico e eficiente. Igualmente válida é a “entrevista ilustrada” concedida por ele para a Idea Fixa, anos atrás. Nessa entrevista, puramente imagética, o cartunista e jornalista responde todas as perguntas com imagens diversas retiradas de diversos cantos da internet.

Rick & Morty, Adam Smith & Karl Marx

Rick & Morty, Adam Smith & Karl Marx

Um dos melhores episódios de Rick & Morty coloca o telespectador diante de um buffet de ideologias. Ele pode escolher a convicção que quiser e a narrativa central do episódio vai se encarregar de sempre tornar amargo o gosto do prato. Em “Contos da Cidadela”, vemos uma sociedade formada por réplicas do homem mais inteligente do universo. Apesar de sua formação incomum e promissora, essa sociedade é burra o suficiente para espalhar infelicidade a todos os seus membros. Fica sugerido aqui que isso é o que todas as sociedades fazem. Há pelo menos um recurso que toda sociedade sabe distribuir de maneira mais ou menos igualitária: a infelicidade. Essa é a sugestão pessimista desse episódio abertamente distópico. O que “Contos da Cidadela” faz é especialmente triste porque constrói uma distopia a partir da existência utópica de um mundo habitado por Ricks, seres altamente capazes e criativos.

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Três Canções para Lenin

Contos da Cidadela transforma utopia em distopia. O documentário Três Canções para Lenin, de 1934, faz o inverso. Aqui, o que muitos considerariam uma distopia ditatorial é tratado como se fosse utopia. O filme é a homenagem apaixonada (e aparentemente muito sincera) do documentarista Dziga Vertov a um “herói de seu povo”. Há exagero na estética e na narrativa e, por trás desse exagero, há uma ou outra conclusão palpável sobre a realidade soviética daqueles dias.

Turma da Mônica e o liberalismo

Turma da Mônica e o liberalismo

Em 1993, uma instituição mantida por bancos privados bancou e distribuiu nas escolas públicas uma história com os personagens de Maurício de Souza. Essa história divulgava os benefícios de um governo pequeno e incapaz de interceder dentro da sociedade que ele deveria servir. Partindo dessa declaração presente na HQ, investigamos a versão brasileira do liberalismo que associa um ímpeto de liberdade econômica com um desejo de ordem social. Em dias mais recentes, essa mistura quase sempre contraditória gerou movimentos sociais que carregam o liberalismo no nome e um conservadorismo quase religioso nas suas pautas. O resultado disso é que um brasileiro que se pretenda liberal, num sentido clássico, está condenado a passar as próximas décadas sem uma representação política compatível com seu ideário.

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O Brasil não é para Amadores

Nesse livro, de Belmiro Valverde Jobim Castor, somos convidados a compreender que características os Estado brasileiro herdou da coroa portuguesa. Também somos convidados a contemplar todo o tempo e toda a originalidade que a superação dessa herança deve consumir. Algumas das dificuldades de representação que um legítimo liberal brasileiro venha a sentir também podem ser compreendidas aqui na medida que a mistura contraditória entre conservadorismo social e liberalismo econômico tem suas raízes colocadas para fora da terra.

Madoka Magica e Freud

Madoka Magica e Freud

O contraste entre o visual “fofinho” da tradicional garota mágica e o tema trágico em Puella Magi Madoka Magica, escrito por Gen Urobushi e digirido por Akiyuki Shinbo, formam a base do conflito da narrativa nesse anime. A deliberada surpresa na desconstrução do gênero transforma o que pareceria mais uma história sobre garotas poderosas em um potente comentário sobre a morte, a delicada e conturbada passagem à vida adulta de uma menina, e os traumas que circundam estes processos. Para quem não viu, vale a pena refletir sobre o discurso célebre de Kyubey, o gato alienígena, a respeito do significado embutido na transformação de uma garota mágica em bruxa, a partir do acúmulo de experiências e angústias adquiridas. Vale também explorar as conexões estéticas do estilo do grupo de animadores Gekidan INU Curry, aplicado especialmente no visual das bruxas e seus labirintos – algo entre dada e surrealismo e o estilo das animações do leste europeu, as colagens e sobreposições são de encher os olhos e repetem a dualidade beleza/dor do anime.

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Beyond the Pleasure Principle

Em Beyond the Pleasure Principle, a ideia de um Freud focado nas relações entre a psique humana e o sexo se permite ir além, em direção a outras forcas motrizes. Em especial, nos interessa o que ele chama de “pulsão de morte”, e a relação que as teorias da narrativa fazem desse desejo de retorno ao estado zero e o nosso desejo epistemofílico pelo final da história. Queremos o final, só para que o começo faça sentido. E assim por diante.